O mal invisível, matéria da revista Galileu, parte 2
Por Camila Artoni,
"A depressão é um quadro clínico que passa batido pela maioria dos médicos. Muitas doenças podem simplesmente ser reflexos da depressão, que costuma ser reduzida a "tristeza". Mas esse transtorno do humor apresenta tanto sintomas emocionais como físicos e é preciso conhecer melhor o problema para evitar a epidemia que já se desenha - hoje, 10% da população mundial sofre do mal. Em dez anos, acredita-se que esse número será de 20%."
"Recentemente, a Organização Mundial da Saúde classificou a depressão como uma das doenças que mais causam incapacidade. É a quarta, em uma lista de cinco. Até 2020 terá ocupado um pouco honroso segundo posto (veja quadro ao lado). No Brasil, hoje, 15,6% da população já é afetada pelo problema. E, ao contrário do que muita gente acredita, o transtorno não é privilégio de quem vive no ritmo intenso das grandes cidades. Estudos realizados na zona urbana de São Paulo e na pequena comunidade de Bambuí (MG) mostraram a mesma prevalência de depressão, com os mesmíssimos sintomas.
A relação
A depressão já foi vista como obra de Satã, mas a ciência provou que as raízes estão na bioquímica do cérebro. Conheça o histórico da relação humana com o problema através dos séculos
400 a.C
Os gregos passam a explicar a depressão como uma doença física
Antiguidade
O problema é considerado um sintoma de possessão demoníaca
200-150 a.C.
Aparecem as primeiras descrições clínicas da depressão no Império Romano
1621
O sacerdote inglês Robert Burton publica o tratado "A Anatomia da Melancolia"
1637
René Descartes introduz a idéia de corpo e mente separados, base da teoria sobre a depessão
1796
É aberto na Inglaterra o Retiro York, hospital para tratamento moral em vez de médico
1800-1900
Século do manicômio. As instituições são vistas como cura para todos os males
1900
Sigmund Freud esboça seu trabalho embrionário sobre a psicanálise
1920-1930
Experimentos físicos brutais são testados em pacientes como forma de cura
1935
A primeira lobotomia frontal é realizada em um indivíduo deprimido
1962
Ken Kesey lança "Um Estranho no Ninho", romance que marca o fim da era dos tratamentos abusivos
Despreparo
O maior problema, apontam os especialistas, está no próprio atendimento recebido por quem sofre da doença. "Os serviços de saúde primária não dão tratamento adequado aos casos e, na maioria das vezes, nem mesmo chegam a diagnosticá-los", diz Pedro Delgado, professor de psiquiatria e presidente da área na universidade americana Case Western Reserve. "Isso ocorre porque os médicos não abordam problemas emocionais, não fazem perguntas sobre apatia. Os sintomas da depressão não são apenas os óbvios e em geral os sintomas físicos, psicossomáticos, são negligenciados, acabam tratados isoladamente."
Para Delgado e outros psiquiatras líderes de vários países, que em 2004 realizaram um ciclo de debates sobre as barreiras ao tratamento eficaz da doença, falta preparo adequado dos dois lados. Primeiro, nas faculdades de medicina, que não dão embasamento suficiente em psiquiatria para profissionais que não se especializam na área. Segundo, entre a própria população. "A depressão ainda é vista como uma fraqueza, uma fase temporária, e não como uma condição clínica real. Ao contrário de uma enfermidade que ataca o braço, a depressão afeta no paciente o sentido de si mesmo. Isso provoca medo e insegurança. O próprio paciente reluta em informar os sintomas ao médico", critica.
Principais causas de incapacidade em todo o mundo
Classificação 2000 2020
1 Infecções respiratórias Doença cardíaca isquêmica
2 Condições perinatais Depressão unipolar
3 HIV/ Aids Acidentes em rodovias
4 Depressão unipolar Doença cerebrovascular
5 Doenças diarréicas Doença pulmonar obstrutiva
*Estudo Global sobre Ônus das Doenças (OMS)
A falta de conhecimento sobre as dimensões do problema tem um custo alto. Além da despesa bilionária que representa aos cofres públicos, entre gastos com reabilitação e redução de produtividade, a depressão é responsável pelo aumento do risco de suicídio. Nos Estados Unidos, morre-se mais por suicídio do que por assassinato. Na Europa, onde a taxa de deprimidos já atinge 25%, o índice é 15% maior do que o de mortos em acidente de trânsito. Segundo a OMS, o risco de colocar fim à própria vida entre pessoas com transtorno depressivo não diagnosticado é de 15%.
Reduzir esses números requer mudança de cultura. Para começar, é preciso entender o que a doença realmente é. O rótulo "doença da alma", por exemplo, não poderia ser mais inadequado. Até os gregos sabiam disso. Nos séculos 4 e 5 a.C., o médico e filósofo Hipócrates descrevia a melancolia como resultado de um desequilíbrio de bile no organismo. Isso mostra que, já na Antiguidade clássica, sabia-se que a depressão não era simplesmente um transtorno emocional, mas um problema biológico.
Altos e baixos
Até alguns anos, achava-se que cerca de 90% das pessoas com sintomas depressivos sofriam de depressão unipolar, o tipo mais conhecido, marcado pelos sintomas "para baixo" (tristeza, falta de prazer, pensamentos catastróficos, apatia). O que a classe médica em geral ignorava é que, em até metade dos casos, pacientes com depressão são do tipo bipolar, isto é, em algum momento da vida têm, ainda que de forma leve e muito breve, alterações de humor "para cima" (euforia, aumento de energia, gastos impulsivos, atitudes arriscadas).
O termo bipolar expressa os dois pólos de humor ou de estados afetivos que se alternam nesse transtorno. Muitos bipolares têm períodos depressivos e ansiosos muito mais marcantes do que os de elevação de humor, e por isso acabam sendo confundidos com unipolares. As abordagens de tratamento, no entanto, são bem diversas nos dois casos. A psicoterapia pode ser importante para ambos, mas os medicamentos são outros. A principal classe de remédios usados é chamada de estabilizadores de humor, que tratam também os sintomas de ansiedade, irritabilidade e impulsividade, ajudando no restabelecimento do bem-estar geral e da regularidade da vida do paciente."
08 abril 2010
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